Lucio Dalla morreu aos 68 anos, em Montreux (Suíça), quinta etapa da turnê européia que devia concluir-se em Berlim, na Alemanha, com um grande concerto para celebrar seus 50 anos de sucessos musicais. Morreu um poeta e um músico que foi o ídolo de três gerações. Do 68 aos anos 90, Lucio Dalla foi a ícone da musica beat, depois do pop e por último da musica romântica sempre mantendo uma indiscutível originalidade no textos e nos arranjos musicais.
Achille Lollo (ROMA) — Grande amigo de Chico Buarte e da mulher Marietta Severo, que hospedou na sua casa em Roma, quando o casal escolheu o caminho do exílio no lugar de se dobrar a censura do regime militar, Lucio Dalla tinha uma grande paixão pelo Brasil. Aliás, esta paixão nasceu primeiro no musico, saxofonista e clarinetista da jazz-band Rheno Dixieland, que, em 1962, escutou Stan Ghez tocar com seu saxofone barítono, as músicas de Tom Jobim e, sobretudo a “bossa nova” de Baden Powel.
Um amor que, depois, desabrochou em 1995 quando ao editar o CD “A Modo Mio” introduziu o arranjo da coluna sonora da inesquecível “Cidade Maravilhosa” no “Bônus Track e depois realizou uma mixagem sonora com as canções “Felicità e O que é o que é”.
Um músico excepcional
Conheci Lucio Dalla em 1964 quando ele deixou Bolonha e sua jazz-band Rheno Dixeland para vir tocar em Roma com o grupo “I Flippers”, que depois passou a ser a banda de Edoardo Vianello, quando este artista lançou na Itália a moda do Halli Galli com o disco “I Watussi”. Este foi o período mais sofrido por Lucio Dalla porque ele devia desdobrar-se tocando musicas comerciais para sobreviver para depois cair nas famosas noites romanas das experimentação musical do Folkstdio, do Beat Studio e de tantas outras trincheiras do jazz, do blues e da nova música italiana localizadas nos bairros boêmios de Trastevere e de Campo de Fiori.
Quando não devia tocar com Edoardo Vianello, pouco antes da meia noite ele chegava com seu clarinete, as vezes levava o saxofone contralto, mas o clarinete era seu preferido e começava a tocar nas chamadas “noites de improvisação”, sobretudo com o saxofonista tenor Schifano que era o jazz-man da alternativa cultural romana.
Diferentemente de muitos músicos que, em 1964, se adaptaram aos padrões comerciais das gravadoras, Lucio Dalla sempre interpretou um “sound” original que era totalmente diferente do “mel discográfico” que a RCA, a Ricordi, a Decca e as outras grandes gravadoras italianas ofereciam aos jovens com a cumplicidade da RAI. Aliás, podemos dizer que a caretice da musica popular italiana, oficializada pelo Festival de San Remo favoreceu a afirmação de Lucio Dalla que logo conquistou o coração dos jovens por ser totalmente diferente dos outros. De fato em 1968, ele escreveu a canção “Paff Bum”, que a gravadora RCA a inscreveu no Festival juntamente com o grupo inglês The Yardbirds”, órfão de Eric Clapton que havia criado o famoso trio “The Crim” com Jack Bruce e Ginger Baker.
Na realidade os managers da RCA esperavam que o contato com os Yardbirds – que na época alimentava o top do rock inglês juntamente aos Beatles, Rolly Stones, Kings, Manfred Man e Animals – influenciasse Lucio Dalla neste gênero de música e assim ocupar uma importante fatia de mercado. Porém Lucio Dalla não caiu na rede dos discográficos e continuou seu caminhou começando a tornar cada vez mais sofisticadas suas músicas e, sobretudo os textos. Uma característica logo imortalizou Lucio como o novo poeta da canção italiana.
Foi assim que em 1971 e depois em 1972 Lucio Dalla apresentou ao Festival de San Remo duas canções, que, ainda hoje, são consideradas a ícone da canção popular italiana culta. Duas canções – Piazza Grande e 04/03/1943, esta mais conhecida por “Gesú Bambino” – que bateram de frente com o moralismo da sociedade italiana e que oferecem aos jovens uma melodia de novo tipo com palavras que é difícil esquecer.
Por outro lado foi o conservadorismo dos bispos do Vaticano que, sem querer, contribuiu a tornar Lucio Dalla um artista conhecido pela maioria dos italianos, uma vez que a Igreja católica iniciou uma campanha para censurar a canção 04/03/1943. Assim ao conseguir, por via judicial, que a gravadora retirasse a palavra “Gesú Bambino” da canção, fez com que o disco de Dalla vendesse muito mais cópias do previsto. Somente depois de quase vinte anos foi permitida que Lucio Dalla gravasse a versão original.
É bom lembrar que o texto da canção “04/03/1943” falava de uma menina de 16 anos que durante a segunda guerra mundial fez amor com um soldado das tropas aliadas “…sem saber o nome e o país dele…” que haviam desembarcado na Itália para derrotar o fascismo. Como em todas as guerra a garota, para alimentar seu filhinho, virou garota de apontamentos na taberna do porto, criando o filhinho naquele ambiente com o sobrenome de “Gesú Bambino”. Ao crescer e gostando de bebida e de putas o garoto passou a ser uma personagem do porto com o nome de “Gesú Bambino”. Canção que, depois foi imortalizada no Brasil por Chico Buarque e na França por Dalidá.
Caruso
Parece incrível mas em quase 30 anos de atividade, as musicas e os textos que Lucio Dalla escreveu são sempre diferentes. Não há repetição, mesmo quando na década de oitenta chegou a gravar um LP (Disco Long Plain com 8/10 canções) a cada ano e meia dúzia de discos single. Além disso em todos os “LP” Dalla grava uma grande diversificação de estilos musicais e de arranjos sofisticados, quase como se o disco fosse a apresentação dos vários estados de animo do próprio autor. Músicas e palavras, que retratam pessoas e momentos que são a cara da sociedade italiana logo após a crise econômica de 1969, ou que entrava na noite dos anos de chumbo.
É, portanto, na dureza dos anos oitenta que Lucio Dalla vai celebrar a vida do cantor de opera italiano, Enrico Caruso, que emigrou e morreu nos Estados Unidos sonhando sempre de voltar em Nápoles. Uma canção que vendeu nove milhões de discos e que mereceu a atenção dos tenores Luciano Pavarotti e Andréa Bocelli do momento que a harmonia da canção “Caruso” quase que se parece com as harmonias dos dramas líricos da opera italiana.
“Caruso” foi também a canção que afirmou Lucio Dalla no mundo inteiro e que, ainda hoje, é lembrada e conhecida com o título “Te voio bene assai”.
Dalla companheiro
Em todas as reprises, programas especiais e comentários realizados logo após sua morte e durante uma dezena de dias pelas televisões italianas, nenhuma delas disse que Lucio Dalla era de esquerda. Era, sim um companheiro dos nossos. Não era um burguês. Não era um artista que renegava seu passado, suas amizades, suas opções políticas, sua cidade, sua cultura.
Quando esteve no Rio de Janeiro em 1995, antes de gravar a entrevista ele quis passear pelo centro de Rio e ao chegar diante do Diretório Regional do PT, no Largo da Sardinha, onde as bandeiras vermelhas faziam resplender a estrela a cinco pontas, ficou quase encantado. Depois ao ver a banquinha da querida Lucilda que vendia as estrelinhas do PT em todas as cores e formatos, com os olhos todos arregalados e acentuando o calão bolonhês disse: “Ué vocês viram,.. aqui vendem as estrelinhas vermelhas como se fossem balas. Na Itália se você desenha somente uma estrela é logo preso! Vou comprar vinte para distribuí-las todas em Bolonha!...” De fato, feliz como uma criança, comprou todas as estrelinhas mais os outros buttons e broches do PT e do MST que estavam na banquinha.
Por ser um jovem do 68, originário de Bolonha, e portanto criado na cultura política do PCI (Partido Comunista Italiano) Lucio Dalla teve certa dificuldade em se reconhecer com a Nova Esquerda, no sentido de que mesmo apoiando-a, não queria a ruptura com o PCI. Porém Dalla cortou definitivamente com o PCI quando o partido de Berlinguer largou sua história para entrar no modernismo do liberalismo ou melhor do social-neoliberalismo. Foi, então que Lucio Dalla, em plena década de noventa começou a dialogar com setores progressistas da comunidade franciscana que ao comentar sua morte escreveram em sua revista “…Morreu Lucio Dalla, dor e tristeza invadiram a comunidade franciscana do convento de Assisi pelo repentino desaparecimento do cantor, músico e compositor de Deus”.
O cachorrinho Alfredo
Esta é, a meu ver, o poema que Dalla musicou olhando a Itália por dentro, além de analisar o que estava sendo feito para este país ser cada da vez mais sofrido pelas pessoas “não bem-sucedidas”.
Entre as casas e os prédios de uma estrada no inverno
Vê-se uma estrela assim linda e violenta que deveria ter vergonha.
Televisores e fogões assim iguais como os dentes da boca
De alguém que veio do centro a procura de um drama por farejar.
O cachorrinho Alfredo, humilhado e alvejado, com os dentes de lobo traído
Pensa um bocado e depois sobe.
Trata-se de um jovem ônibus de aparência social
Com passagem gratuita de umas prefeitura nada mal.
Nem o Natal é uma noite normal
Com os olhos fixando o chão
A gente prepara à guerra.
Há guerra nas avenidas do centro onde o vento é diferente
São diferentes os olores para quem vem de fora.
Uma grande faixa com um escudo e uma cruz e uma estrela cadente
Fazem publicidade de uma dieta alimentar
Pistola na mão a cidade se prepara
A queimar o dinheiro
E um dia mais amargo.
Na quarta paragem, sem nenhum motivo, desce decidido
O cachorrinho Alfredo se inventa um sorriso.
Sorri a uma brincadeira de uma mulher a um amigo que as 7 da noite depois de mais de dois anos
Saiu, há pouco da prisão.
O grupo chileno pintado na parede
Promete um show
Um golpe seguro.
A música andina, que saco mortal, são mais de três anos
Que se repete e é sempre igual
Enquanto o cachorrinho Alfredo canta de maneira diferente
A canção sem som de alguém que se perdeu
Cantada entre os dentes
De coração à coração.
Se a dele é uma maldade então eu vou apertá-la
E, assim, iremos muito longe.
Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente de Brasil de Fato na Itália e editor do programa TV “Quadrante Informativo”.
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